CAPÍTULO
IV
Dado que oferecerá meios, nunca antes
disponíveis, para circulação e armazenamento de informações e para a
comunicação, o próximo século submeterá a educação a uma dura obrigação que
pode parecer, à primeira vista, quase contraditória. A educação deve
transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e
saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases
das competências do futuro. Simultaneamente, compete-lhe encontrar e assinalar
as referências que impeçam as pessoas de ficarem submergidas nas ondas de
informações, mais ou menos efêmeras, que invadem os espaços públicos e privados
e as levem a orientar-se para projetos de desenvolvimento individuais e
coletivos. À educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo
complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permita
navegar através dele.
Nessa visão prospectiva, uma resposta
puramente quantitativa à necessidade insaciável a educação - uma bagagem
escolar cada vez mais pesada - já não é possível nem mesmo adequada. Não basta,
de fato, que cada um acumule no começo da vida uma determinada quantidade de
conhecimentos de que possa abastecer-se indefinidamente. É, antes, necessário
estar à altura de aproveitar e explorar, do começo ao fim da vida, todas as
ocasiões de atualizar, aprofundar e enriquecer estes primeiros conhecimentos, e
de se adaptar a um mundo de mudanças.
Para poder dar resposta ao conjunto das
suas missões, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens
fundamentais que, ao longo de toda vida, serão de algum modo para cada
indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é adquirir os
instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio
envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os
outros em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser, via essencial
que integra as três precedentes. É claro que estas quatro vias do saber
constituem apenas uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato,
de relacionamento e de permuta.
Mas, em regra geral, o ensino formal
orienta-se, essencialmente, se não exclusivamente, para o aprender a conhecer
e, em menor escala, para o aprender a fazer. As duas outras aprendizagens
dependem , a maior parte das vezes, de circunstâncias aleatórias quando não são
tidas, de algum modo, como prolongamento natural das duas primeiras. Ora, a
Comissão pensa que cada um dos "quatro pilares do conhecimento" deve
ser objeto de atenção igual por parte do ensino estruturado, a fim de que a
educação apareça como uma experiência global a levar a cabo ao longo de toda a
vida, no plano cognitivo no prático, para o indivíduo enquanto pessoa e membro
da sociedade.
Desde o início de seus trabalhos que os
membros da Comissão compreenderam que seria indispensável, para enfrentar os
desafios do próximo século, assinalar novos objetivos à educação e, portanto,
mudar a idéia que se tem da sua utilidade. Uma nova concepção ampliada de
educação devia fazer com que todos pudessem descobrir, reanimar e fortalecer o
seu potencial criativo - revelar o tesouro escondido em cada um de nós. Isto
supõe que se ultrapasse a visão puramente instrumental da educação, considerada
como a via obrigatória para obter certos resultados (saber fazer, aquisição de
capacidades diversas, fins de ordens econômicas), e se passe a considerá-la em
toda sua plenitude: realização da pessoa que, na sua totalidade aprende a ser.
Aprender
a conhecer
Este tipo de aprendizagem que visa nem
tanto a aquisição de um repertório de saberes codificados, mas antes o domínio
dos próprios instrumentos do conhecimento pode ser considerado,
simultaneamente, como um meio e uma finalidade da vida humana. Meio, porque se
pretende que cada um aprenda a compreender o mundo que o rodeia, pelo menos na
medida em que isso lhe é necessário para viver dignamente, para desenvolver as
suas capacidades profissionais, para comunicar. Finalidade, porque seu
fundamento é o prazer de compreender, de conhecer, de descobrir. Apesar dos
estudos sem utilidade imediata estarem desaparecendo, tal a importância dada
atualmente aos saberes utilitários, a tendência para prolongar a escolaridade e
o tempo livre deveria levar os adultos a apreciar cada vez mais , as alegrias
do conhecimento e da pesquisa individual. O aumento dos saberes, que permite
compreender melhor o ambiente sob os seus diversos aspectos, favorece o
despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crítico e permite
compreender o real, mediante a aquisição de autonomia na capacidade de
discernir. Deste ponto de vista, há que repeti-lo, é essencial que cada
criança, esteja onde estiver, possa ter acesso, de forma adequada, às
metodologias científicas de modo a tornar-se para toda a vida "amiga da ciência"[1].
Em nível do ensino secundário e superior, a formação inicial deve fornecer a
todos os alunos instrumentos, conceitos e referências resultantes dos avanços
das ciências e dos paradigmas do nosso tempo.
Contudo, como o conhecimento é múltiplo e
evolui infinitamente, torna-se cada vez mais inútil tentar conhecer tudo e,
depois do ensino básico, a omnidisciplinaridade é um engodo. A especialização,
porém, mesmo para futuros pesquisadores, não deve excluir a cultura geral.
"Um espírito verdadeiramente formado, hoje em dia tem necessidade de uma
cultura geral vasta e da possibilidade de trabalhar em profundidade determinado
número de assuntos. Deve-se, do princípio ao fim do ensino, cultivar
simultaneamente, estas duas tendências"[2]. A cultura geral, enquanto
abertura de outras linguagens e outros conhecimentos permite, antes de tudo,
comunicar-se. Fechado na sua própria ciência, o especialista corre o risco de
se desinteressar pelo o que fazem os outros. Sentirá dificuldade em cooperar,
quaisquer que sejam as circunstâncias. Por outro lado, a formação cultural,
cimento das sociedades no tempo e no espaço, implica a abertura a outros campos
do conhecimento, e deste modo, podem operar-se fecundas sinergias entre as
disciplinas. Especialmente em matéria de pesquisa, determinados avanços do
conhecimento dão-se nos pontos de interseção das diversas áreas disciplinares.
Aprender para conhecer supõe, antes de
tudo, aprender a aprender, exercitando a atenção, a memória e o pensamento.
Desde a infância, sobretudo nas sociedades dominadas pela imagem televisiva, o
jovem deve aprender a prestar atenção às coisas e às pessoas. A sucessão muito
rápida de informações mediatizadas, o "zapping" tão freqüente,
prejudicam de fato o processo de descoberta, que implica duração e aprofundamento
de apreensão. Esta aprendizagem da atenção pode revestir formas diversas e
tirar partido de várias ocasiões da vida (jogos, estágios em empresas, viagens,
trabalhos práticos de ciências...).
Por outro lado o exercício da memória é um
antídoto necessário contra a submersão pelas informações instantâneas
difundidas pelos meios de comunicação social. Seria perigoso imaginar que a
memória pode vir a tornar-se inútil, devido a enorme capacidade de
armazenamento e difusão das informações de que dispomos daqui em diante. É
preciso ser, sem dúvida, seletivo na escolha dos dados a aprender "de
cor" mas, propriamente, a faculdade humana de memorização associativa, que
não é redutível a um automatismo, deve ser cultivada cuidadosamente. Todos os
especialistas concordam em que a memória deve ser treinada desde a infância, e
que é errado suprimir da prática escolar certos exercícios tradicionais,
considerados como fastidiosos.
Finalmente, o exercício do pensamento ao
qual a criança é iniciada, em primeiro lugar, pelos pais e depois pelos
professores, deve comportar avanços e recuos entre o concreto e o abstrato.
Também se devem combinar, tanto no ensino como na pesquisa dois métodos
apresentados, muitas vezes, como antagônicos: o método dedutivo por um lado e o
indutivo por outro. De acordo com as disciplinas ensinadas, um pode ser mais
pertinente do que o outro, mas na maior parte das vezes o encadeamento do
pensamento necessita da combinação dos dois.
O processo de aprendizagem do conhecimento
nunca está acabado, e pode enriquecer-se com qualquer experiência. Neste
sentido, liga-se cada vez mais à experiência do trabalho, à medida que este se
torna menos rotineiro. A educação primária pode ser considerada bem sucedida se
conseguir transmitir às pessoas o impulso e as bases que façam com que
continuem a aprender ao longo de toda a vida, no trabalho, mas também fora
dele.
Aprender
a fazer
Aprender a conhecer e aprender a fazer são,
em larga medida, indissociáveis. Mas a segunda aprendizagem esta mais
estreitamente ligada à questão da formação profissional: como ensinar o aluno a
pôr em pratica os seus conhecimentos e, também, como adaptar a educação ao
trabalho futuro quando não se pode prever qual será a sua evolução? É a esta
última questão que a Comissão tentará dar resposta mais particularmente.
Convém distinguir, a este propósito, o caso
das economias industriais onde domina, o trabalho assalariado do das outras
economias onde domina, ainda em grande escala, o trabalho independente ou
informal. De fato, nas sociedades assalariadas que se desenvolveram ao longo do
século XX, a partir do modelo industrial, a substituição do trabalho humano
pelas máquinas tornou-se cada vez mais imaterial e acentuou o caráter cognitivo
das tarefas, mesmo nas indústria, assim como a importância dos serviços na
atividade econômica. O futuro dessas economias depende, aliás, da sua
capacidade de transformar o progresso dos conhecimentos em inovações geradoras
de novas empresas e de novos empregos. Aprender a fazer não pode, pois, continuar
a ter o significado simples de preparar alguém para uma tarefa uma tarefa
material bem determinada, para fazê-lo fabricar no fabrico de alguma coisa.
Como conseqüência, as aprendizagens devem evoluir e não podem mais serem
consideradas como simples transmissão de práticas mais ou menos rotineiras,
embora estas continuem a ter um valor formativo que não é de desprezar.
Da
noção de qualificação à noção de competência
Na indústria especialmente para operadores
e os técnicos, o domínio do cognitivo e do informativo nos sistemas de
produção, torna um pouco obsoleta a noção de qualificação profissional e leva a
que se dê muita importância à competência pessoal. O progresso técnico
modifica, inevitavelmente, as qualificações exigidas pelos novos processos de
produção. As tarefas puramente físicas são substituídas por tarefas de produção
mais intelectuais, mais mentais, como o comando de máquinas, a sua manutenção e
vigilância, ou por tarefas de concepção, de estudo, de organização à medida que
as máquinas se tornam, também, mais "inteligentes" e que trabalho se
"desmaterializa".
Este aumento de exigências de matéria de
qualificação, em todos os níveis, têm varias origens. No que se diz respeito ao
pessoal de execução, a justa posição de trabalhos prescritos e parcelados deu
lugar à organização em "coletivos de trabalho" ou "grupos de
projeto", a exemplo do que se faz nas empresas japonesas: uma espécie de
taylorismo ao contrário. Por outro lado a indiferenciação entre trabalhadores
sucede a personalização das tarefas. Os empregadores substituem, cada vez mais,
a exigência de uma qualificação ainda muito ligada, de seu ver, à idéia de
competência material, pela exigência de uma competência que se apresenta como
uma espécie de coquetel individual, combinando a qualificação, em sentido
estrito, adquirida pela formação técnica e profissional, o comportamento
social, a aptidão para o trabalho em equipe,a capacidade de iniciativa, o gosto
pelo risco.
Se juntarmos a essas novas exigências a
busca de um compromisso pessoal do trabalhador, considerando como agente de
mudança, torna-se evidente que as qualidades muito subjetivas, inatas ou
adquiridas, muitas vezes denominadas "saber ser" pelos dirigentes
empresariais, se juntam ao saber e ao saber fazer para compor a competência
exigida - o que mostra bem a ligação que a educação deve manter, como aliás
sublinhou a Comissão, entre os diversos aspectos da aprendizagem. Qualidades
como a capacidade de comunicar, de trabalhar com os outros, de gerir e resolver
conflitos, tornam-se cada vez mais importantes. E esta tendência torna-se ainda
mais forte, devido ao desenvolvimento do setor de serviços.
A
"desmaterialização" do trabalho e a importância dos serviços entre as
atividades assalariadas
As conseqüências sobre a aprendizagem da
"desmaterialização" das economias avançadas são particularmente
impressionantes se se observar a evolução quantitativa e qualitativa dos
serviços. Este setor, muito diversificado, define-se sobre tudo pela negativa,
não são nem industriais nem agrícola e que, apesar da sua diversidade, têm em
comum o fato de não produzirem um bem material.
Muitos serviços definem-se, sobretudo, em
função da relação interpessoal a que dão origem. Podem encontrar-se exemplos
disso tanto no setor mercantil que prolifera, alimentando-se da complexidade
crescente das economias (especialidades muito variadas, serviços de
acompanhamento e de aconselhamento tecnológico, serviços financeiros,
contabilísticos ou de gestão), como no setor não comercial mais tradicional
(serviços sociais, ensino, saúde, etc.). Em ambos os casos, as atividades de
informação e comunicação são primordiais; dá-se prioridade à coleta e
tratamento personalizado de informações específicas para determinado projeto.
Neste tipo de serviços, a qualidade de relação entre prestador e usuário
depende, também muito, deste último. Compreende-se, pois, que o trabalho em
questão já não possa ser feito da mesma maneira que quando se trata de
trabalhar a terra ou de fabricar um tecido. A relação com a matéria e a técnica
deve ser completada com aptidão pra as relações interpessoais. O
desenvolvimento dos serviços exige, pois, cultivar qualidades humanas que a
formações tradicionais não transmitem, necessariamente e que correspondem à
capacidade de estabelecer relações estáveis e eficazes entre as pessoas.
Finalmente é provável que nas organizações
ultratecnicistas do futuro os déficits relacionais possam criar graves
disfunções exigindo qualificações de novo tipo, com base mais comportamental do
que intelectual. O que pode ser uma oportunidade para os não diplomados, ou com
deficiente preparação em nível superior. A intuição, o jeito, a capacidade de
julgar, a capacidade de manter unida uma equipe não são de fato qualidades,
necessariamente, reservadas as pessoas com altos estudos. Como e onde ensinar
estas qualidades mais ou menos inatas? Não se podem deduzir simplesmente os
conteúdos de formação, das capacidades ou aptidões requeridas. O mesmo problema
põe-se, também, quanto à formação profissional, nos países em desenvolvimento.
O
trabalho na economia formal
Nas economias em desenvolvimento, onde a
atividade assalariada não é dominante, a natureza do trabalho é muito
diferente. Em muitos países da África subsaariana e alguns países da América
Latina e da Ásia, efetivamente, só uma pequena parte da população tem emprego e
recebe salário, pois a grande maioria participa na economia nacional de
subsistência. Não existe, rigorosamente falando, referencial de emprego; as
competências são, muitas vezes, de tipo tradicional. Por outro lado, a
aprendizagem não se destina, apenas, a um só trabalho mas tem como objetivo
mais amplo preparar para uma participação formal ou informal no
desenvolvimento. Trata-se, freqüentemente, mais de uma qualificação social do
que uma qualificação profissional.
Noutros países em desenvolvimento existe,
ao lado da agricultura e de um reduzido setor formal, um setor de economia ao
mesmo tempo moderno e informal, por vezes bastante dinâmico, à base de
artesanato, de comercio e de finanças que revela a existência de uma capacidade
empreendedora bem adaptada às condições locais.
Em ambos os casos, após numerosas pesquisas
levadas a cabo em países em desenvolvimento, apercebemos-nos que encaram o
futuro como estando estreitamente ligado à aquisição da cultura científica que
lhes dará acesso à tecnologia moderna, sem negligenciar com isso as capacidades
específicas de inovação e criação ligadas ao contexto local.
Existe uma questão comum aos países
desenvolvidos e em desenvolvimento: como aprender a comportar-se, eficazmente,
numa situação de incerteza, como participar na criação do futuro?
Aprender
a viver juntos, aprender a viver com os outros
Sem dúvida, esta aprendizagem representa,
hoje em dia, um dos maiores desafios da educação. O mundo atual é, muitas
vezes, um mundo de violência que se opõe à esperança posta por alguns no
progresso da humanidade. A história humana sempre foi conflituosa, mas há
elementos novos que acentuam o problema e, especialmente, o extraordinário
potencial de autodestruição criado pela humanidade no decorrer do século XX. A
opinião pública, através dos meios de comunicação social, torna-se observadora
impotente e até refém dos que criam ou mantém conflitos. Até agora, a educação
não pôde fazer grande coisa para modificar esta situação real. Poderemos
conceber uma educação capaz de evitar os conflitos, ou de os resolver de
maneira pacífica, desenvolvendo o conhecimento dos outros, das suas culturas,
da sua espiritualidade.
É de louvar a idéia de ensinar a
não-violência na escola, mesmo que apenas constitua um instrumento, entre
outros, para lutar contra os preconceitos geradores de conflitos. A tarefa é
árdua porque, muito naturalmente, os seres humanos têm tendência a
supervalorizar as suas qualidades e as do grupo que a pertencem,e a alimentar
preconceitos desfavoráveis em relação aos outros. Por outro lado, o clima geral
de concorrência que caracteriza, atualmente, a atividade econômica no interior
de cada país, e sobretudo em nível internacional, têm a tendência de dar
prioridade ao espírito de competição e ao sucesso individual. De fato, esta
competição resulta, atualmente em uma guerra econômica implacável e numa tensão
entre os mais favorecidos e os pobres, que divide as nações do mundo e exacerba
as rivalidades históricas. É de lamentar que a educação contribua, por vezes,
para alimentar este clima, devido a uma má interpretação da idéia de emulação.
Que fazer para mudar a situação? A
experiência mostra que, para reduzir o risco, não basta pôr em contato e em
comunicação membros de grupos de diferentes (através de escolas comuns a várias
etnias ou religiões, por exemplo). Se, no seu espaço comum, estes diferentes
grupos já entram em competição ou se o seu estatuto é desigual, um contato
deste gênero pode, pelo contrário, agravar ainda mais as tensões latentes e
degenerar em conflitos. Pelo contrário, se este contato se fizer num contexto
igualitário, e se existirem objetivos e projetos em comuns, os preconceitos e a
hostilidade latente podem desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais serena
e até amizade.
Parece, pois, que a educação deve utilizar
duas vias complementares.Num primeiro nível, a descoberta progressiva do outro.
Num segundo nível, e ao longo de toda vida, a participação em projetos comuns,
que parece ser um método eficaz para evitar ou resolver conflitos latentes.
A
descoberta do outro
A educação tem por missão, por um lado,
transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e, por outro,
levar as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da interdependência
entre todos os seres humanos do planeta. Desde tenra idade a escola deve, pois,
aproveitar todas as ocasiões para esta dupla aprendizagem. Algumas disciplinas
estão mais adaptadas a este fim, em particular a geografia humana a partir do
ensino básico e as línguas e literaturas estrangeiras mais tarde.
Passando à descoberta do outro,
necessariamente, pela descoberta de si mesmo, e por dar à criança e ao
adolescente uma visão ajustada do mundo, a educação, seja ela dada pela
família, pela comunidade ou pela a escola, deve antes de mais ajudá-los a
descobrir a si mesmos. Só então poderão, verdadeiramente, pôr-se no lugar dos
outros e compreender as suas reações. Desenvolver esta atitude de empatia, na
escola é muito útil para os comportamentos sociais ao longo de toda a vida.
Ensinando, por exemplo, aos jovens a adotar a perspectiva de outros grupos
étnicos ou religiosos podem evitar incompreensões geradoras de ódio e violência
entre adultos. Assim, o ensino das histórias das religiões ou dos costumes pode
servir de referência útil para futuros comportamentos[3].
Por fim os métodos de estudo não devem ir
contra este reconhecimento do outro. Os professores que, por dogmatismo, matam
a curiosidade ou o espírito crítico dos seus alunos, em vez de o desenvolver,
podem ser mais prejudiciais do que úteis. Esquecendo que funcionam como
modelos, como esta sua atitude, arriscam-se a enfraquecer por toda vida nos
alunos a capacidade de abertura à alteridade e de enfrentar as inevitáveis
tensões entre pessoas, grupos e nações. O confronto através do diálogo e da
troca de argumentos é um dos instrumentos indispensáveis à educação do século
XXI.
Tender
para objetivos comuns
Quando se trabalha em conjunto sobre
projetos motivadores e fora do habitual, as diferenças e até os conflitos
inter-individuais tendem a reduzir-se, chegando a desaparecer em alguns casos.
Uma nova forma de identificação nasce destes projetos que fazem com que
ultrapassem as rotinas individuais, que valorizam aquilo que é comum e não as
diferenças. Graças a prática do desporto, por exemplo, quantas tensões entre
classes sociais ou nacionalidades se transformaram, afinal, em solidariedade
através de experiência e do prazer do esforço comum!
A educação formal deve, pois, reservar
tempo e ocasiões suficientes em seus programas para iniciar os jovens em
projetos de cooperação, logo desde da infância, no campo das atividades
desportivas e culturais, evidentemente, mas também estimulando a sua
participação em atividades sociais: renovação de bairros, ajuda aos mais
desfavorecidos, ações humanitárias, serviços de solidariedade entre gerações...
As outras organizações educativas e associações devem, neste campo, continuar o
trabalho iniciado pela escola. Por outro lado, na prática letiva diária, a
participação de professores e alunos em projetos comuns podem dar origem à
aprendizagem de métodos de resolução de conflitos e constituir uma referência
para a vida futura dos alunos, enriquecendo a relação professor/alunos.
Aprender
a ser
Desde a sua primeira reunião, a Comissão
reafirmou, energicamente, um princípio fundamental: a educação deve contribuir
para o desenvolvimento total da pessoa - espírito e corpo, inteligência,
sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade.
Todo ser humano deve ser preparado, especialmente graças à educação que recebe
na juventude, para elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os
seus próprios juízos de valor, de modo a poder decidir, por si mesmo, como agir
nas diferentes circunstâncias da vida.
O relatório Aprender a ser (1972) exprimia,
no preâmbulo, o temor da desumanização do mundo relacionada com a evolução
técnica[4]. A evolução das sociedades desde então e, sobretudo, o enorme
desenvolvimento do poder mediático veio acentuar este temor e tornar mais
legítima ainda a injunção que lhe serve de fundamento. É possível que no século
XXI estes fenômenos adquiram ainda mais amplitude. Mais do que preparar as
crianças para uma dada sociedade, o problema será, então, fornecer-lhes
constantemente forças e referências intelectuais que lhes permitam compreender
o mundo que as rodeia e comportar-se nele como autores responsáveis e justos.
Mais do que nunca a educação parece ter, como papel essencial, conferir a todos
seres humanos a liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e
imaginação de que necessitam para desenvolver seus talentos e permanecerem,
tanto quanto possível, donos do seu próprio destino.
Este imperativo não é apenas a natureza
individualista: a experiência recente mostra que o que poderia aparecer,
somente, como uma forma de defesa do indivíduo perante um sistema alienante ou
tido como hostil, é também por vezes, a melhor oportunidade de progresso para
as sociedades. A diversidade das personalidades, a autonomia e o espírito de
iniciativa, até mesmo o gosto pela provocação, são os suportes da criatividade
e da inovação. Para reduzir a violência ou lutar contra os diferentes flagelos
que afetam a sociedade os métodos inéditos retirados de experiências no terreno
já deram prova da sua eficácia.
Num mundo em mudança, de que um dos
principais motores parece ser a inovação tanto social como econômica, deve ser
dada a importância especial a imaginação e à criatividade; claras manifestações
da liberdade humana elas podem vir a ser ameaçadas por uma certa
estandardização dos comportamentos individuais. O século XXI necessita desta
diversidade de talentos e de personalidades, mas ainda de pessoas excepcionais,
igualmente essenciais em qualquer civilização. Convém, pois, oferecer às crianças
e aos jovens todas as ocasiões possíveis de descoberta e experimentação -
estética, artística, desportiva, científica, cultural e social -, que venham
completar a apresentação atraente daquilo que, nestes domínios, foram capazes
de criar as gerações que os procederam ou suas ontemporâneas. Na escola, a arte
e a poesia deveriam ocupar um lugar mais importante do que aquele que lhes é
concedido, em muitos países, por um ensino tornado mais utilitarista do que
cultural. A preocupação em desenvolver a imaginação e a criatividade deveria,
também, revalorizar a cultura oral e os conhecimentos retirados da experiência
da criança ou do adulto.
Assim a Comissão adere plenamente ao
postulado do relatório Aprender a ser. "O desenvolvimento tem por objeto a
realização completa do homem, em volta a sua riqueza e na complexidade das suas
expressões e dos seus compromissos: indivíduo, membro de uma família e de uma
coletividade, cidadão e produtor, inventor de técnicas e criador de
sonhos"[5]. Este desenvolvimento do ser humano, que se desenrola desde o
nascimento até à morte, é um processo dialético que começa pelo conhecimento de
si mesmo para se abrir, em seguida, à relação com o outro. Neste sentido, a
educação é antes de mais nada uma viagem interior, cujas as etapas correspondem
às da maturação contínua da personalidade. Na hipótese de uma experiência
profissional de sucesso, a educação como meio para tal realização é, ao mesmo
tempo, um processo individualizado e uma construção social interativa.
É escusado dizer que os quatro pilares da
educação, acabados de escrever, não se apóiam, exclusivamente, numa fase da
vida ou num único lugar. Como se verá no capítulo seguinte, os tempos e as
áreas da educação devem ser repensados, completar-se e interpenetrar-se de maneira
a que cada pessoa, ao longo de toda a sua vida, possa tirar o melhor partido de
um ambiente educativo em constante ampliação.
Pistas
e recomendações
A educação ao longo de toda vida baseia-se
em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver
juntos, aprender a ser.
• Aprender
a conhecer, combinando uma cultura geral, suficientemente vasta, com a
possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias. O que
também significa: aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades
oferecidas pela educação ao longo de toda a vida.
• Aprender
a fazer, a fim de adquirir, não somente uma qualificação profissional mas, de
uma maneira mais ampla, competências que tornem a pessoa apta a enfrentar
numerosas situações e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer, no
âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que se oferecem aos
jovens e adolescentes, quer espontaneamente, fruto do contexto local ou
nacional, quer formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o
trabalho.
• Aprender
a viver juntos desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das
interdependências - realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos
- no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
• Aprender
a ser, para melhor desenvolver a sua personalidade e estar à altura de agir com
cada vez maior capacidade de autonomia, de discernimento e de responsabilidade
pessoal. Para isso, não negligenciar na educação nenhuma das potencialidades de
cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas,
aptidão para comunicar-se.
Numa altura em que os sistemas educativos
formais tendem a privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento de outras
formas de aprendizagem, importa conceber a educação como um todo. Esta
perspectiva deve, no futuro, inspirar e orientar as reformas educativas, tanto
em nível da elaboração de programas como da definição de novas políticas
pedagógicas.
________________________________________
NOTAS
[1] Relatório da terceira sessão da
Comissão, Paris, 12-15 de janeiro de 1994.
[2] Conforme Laurent Schwartz: "L'enseignement scientifique"
in Instituto de France. Réflexions sur l'enseignement, Paris, Flammarion, 1993.
[3] Carnegie Corporation of New York. Education for Conflict Resolution
(Retirado de Annual Report 1994 por David A. Hamburg, presidente da Carnegie
Corporation of New York).
[4] "- Risco de alienação da
personalidade patente nas formas obsessivas de propaganda e publicidade, no conformismo
dos comportamentos que podem ser impostos do exterior, em detrimento das
necessidades autênticas e da identidade intelectual e afetiva de cada um.
- Risco de expulsão pelas máquinas do mundo
do trabalho, no qual a pessoa pelo menos tinha a impressão de se mover
livremente e de decidir por si própria."
(FAURE, Edgar e outros. Apprendre à être. Relatório da Comissão
Internacional sobre o Desenvolvimento da Educação. UNESCO. Paris, Fayard, 1972.
[5] Op. cit., p.XVI.
________________________________________
Relatório para a UNESCO/Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors.
O Relatório está publicado no Brasil, com o
título Educação: Um Tesouro a Descobrir (UNESCO/MEC. São Paulo: Cortez,1999).
No livro, a discussão dos quatro pilares
ocupa todo o Capítulo 4, pp. 89-102, que aqui se transcreve, com a devida
autorização da Cortez Editora.
Disponível em: <
http://4pilares.net/text-cont/delors-pilares.htm >. Acesso em: 25 mar.2008
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